O Deus inacabado

Conheci Deus na sala de aula do primário. Ele estava aprendendo o bê-a-bá junto com as crianças daqui da Zona Leste de São Paulo. Confesso que ele era um garoto espoleta, bem daquele jeito que Alberto Caeiro descreveu “é o divino que sorri e que brinca”. Brincávamos bastante de detetive, eu sempre tentava descobrir mais um pouquinho da sua personalidade, mas ele, sendo Deus, um ser em eterna construção, acabava sempre me enganando e dávamos boas risadas.

Quando relembro essas memórias de infância me vem uma melodia quase-divina na mente, não me lembro onde ouvi, mas tenho minhas pistas que foi Deus que me mostrou quando éramos crianças. Melodia que lembra uma canção de ninar, com um toque das músicas de ciranda e um tambor suave marcando o ritmo. Talvez seja a música que está pelo Universo e ressoa em cada coração vivente, o som da vida, o ritmo do pulsar, o gingado do divino.

O tempo foi passando, eu fui crescendo, e acabamos nos distanciando. Sabe como é, né? Adultecemos. Mas, novamente cito Caeiro, “ele é a Eterna Criança”. Ele continuou a me chamar para brincar, mas eu me recusava pois já me dizia crescida. Não estudamos na mesma escola no ensino médio, soube por outros amigos que ele já estava escrevendo poesias e organizava um sarau na periferia da Zona Leste.

O reencontrei depois na faculdade. Eu estava estudando teologia, e ele literatura. Marcamos um chazinho da tarde (Deus adora chá de camomila com mel). Como foi delicioso reencontrá-lo. Conversamos sobre tudo. Todas as nossas fases, mudanças, relembramos a nossa infância na escola e das travessuras que aprontávamos. Ele me contou que havia se tornado poeta e que por isso estava na graduação de literatura, não sabia qual seria seu tema de pesquisa, pois amava todos os poetas do Brasil.

Papo vai, papo vem, e não pude deixar de perguntar o porquê de ele não ter optado por estudar Teologia, já que era Deus e deveria aprender mais sobre ele mesmo, expliquei que o autoconhecimento era importante e que achava que seria interessante ele estudar teologia. Mas aí, na simplicidade de um Deus respondeu:

– A teologia e os teólogos pouco falam de mim. Eu estou mesmo é nos livros de ficção, na poesia e nos contos mais diversos. A literatura fala mais sobre mim do que a teologia, ela compreende que estou sempre em mutação, que sou um ser ambíguo, complexo e do povo. Não fica tentando me definir e nem colocar em dogmas eclesiásticos. Optei por literatura, e principalmente pelo estudo da poesia, porque ela capta a essência do meu ser, um ser inacabado.

Ficamos em silêncio por um tempo. Estava tentando digerir essa ideia do inacabamento de Deus, coisa difícil de se pensar. E disse:

– Como assim inacabado? Não sei se entendi direito.

– Lembra quando aprendi a ler e a escrever contigo? Então, está aí um bom exemplo! Sou um ser inacabado porque sou um ser em eterna construção de si mesmo, assim como todo mundo. Como aprendi a ler e escrever, aprendo o resto das coisas com vocês. Eu preciso aprender e apreender a beleza do mundo. E não apenas as belezas, mas as contradições. Não sei lidar com muita coisa nesse caos todo, mas a poesia me ajuda a identificar os pontos obscuros da vista. A ser menos cego e mais consciente e observador. O que tenho aprendido recentemente é que para mudar o mundo é preciso ter a visão do todo. A visão do todo inclui a visão em partes, mas o todo é maior e mais importante que as partes. Quando fechamos os olhos por um tempo e o abrimos de repente, não vemos as coisas com mais nitidez? Talvez seja preciso fechar mais os olhos para poder abrir os horizontes de transformação. Quem muito vê nada observa. E é por isso também que não quis fazer teologia. Os teólogos teimam em dizer que me veem, mas nada observam sobre mim. Fazem discursos eloquentes sobre os meus atributos (dos quais não tenho quase nenhum) mas não conseguem silenciar diante da nuvem do não-saber. Sou um Deus aprendente.

Nesse dia continuamos na temática por horas a fio. Esse é apenas um breve relato de uma de nossas conversas. Depois do reencontro começamos a nos ver todos os dias, ele compartilhava seus estudos de literatura e poesia e eu as descobertas das diversas teologias libertadoras. Essa troca nos tem rendido ótimas ideias e grande diálogos. Estamos sempre aprendendo um com o outro e essa é a grande beleza de nossa relação. Ele é um Deus aprendente e eu uma aprendente de Deus.

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