Manifesto da Teologia Surrealista

[por angelica tostes]

Nós, teólog@s surrealistas, acreditamos: a única teologia possível é a teologia surrealista. Afinal, já existiu na Terra alguma teologia não-surrealista? Talvez não tenham admitido para vocês, mas, toda teologia é surreal. Surreal porque toda THEOS-logia está além da realidade. E para fazer teologia é necessário deixar a lucidez de lado. Mera ilusão d@s companheir@s que pensam que teologia é coisa de gente erudita e sisuda. Ess@s daí são os que vivem ludibriados pela falsa sabedoria, afinal, teologia não é sabedoria, teologia é imaginação!

Queremos trazer de volta a teologia inútil – já existiu teologia útil? -. A inutilidade da teologia é que a torna sagrada. Deus deve ser inútil. Sabes por quê? Porque só amamos verdadeiramente aquilo que nos é inútil! Sabias disso? Não te contaram? Pois bem, enquanto o Sagrado lhe for útil não há um amor verdadeiro, já que será uma relação comercial envolvida. Assim como Deus deve ser inútil, toda teologia deve ser inútil.

Mas não se escandalize! A inutilidade é uma palavra ofensiva apenas nessa nossa linguagem utilitarista, onde tudo o que tem valor deve ser útil. Há um valor imenso na inutilidade. Oscar Wilde, nosso dândi surrealista, dizia que toda arte é absolutamente inútil. E também aprendemos com nossos poetas brasileiros em específico, o grande surrealista Manoel de Barros que a Poesia é a virtude do inútil. Pois então, a beleza da inutilidade é ela ser potência de criação, de imaginação. A teologia é recheada com inutilidades das mais variadas, é preciso escolher a inutilidades belas para fazer valer a pena o labor teológico. Wilde ainda dizia que a única desculpa para se fazer uma coisa inútil é admirá-la imensamente, pois bem, façamos uma teologia surrealista admirável, bela, poética.

Nós, teólog@s surrealistas, sempre existimos. Desde a fundação dos tempos, quando o espírito pairava sobre as águas, quando a terra era sem forma e vazia. E foi na inutilidade da vida que inventamos os Deus@s e, claro, fizemos teologias sobre el@s. Mas a nossa imaginação está sendo ameaçada pela vida de servidão capitalista, utilitarismo, a supremacia da racionalidade-lógica-matemática-pragmática! Precisamos da resistência da scholé, o santo ócio, para que possamos continuar com o vão ofício de sermos teólog@s-imaginantes-surrealistas, e claro, louc@s.

Defendemos a loucura como método teológico. Sem loucura não há teologia, porque o próprio Deus é a loucura. E a loucura de Deus é mais sapiencial que a sabedoria dos seres humanos. Lemos por aí que a voz de Deus é loucura para os que ouvem, é a palavra-poesia, que é pulsante, respira, pira, é viva. Invade, penetra, entra na alma, no espírito, nos ossos, na carne, no corpo, no pensar. Faz a gente conhecer a gente e ser mais gente. Faz o coração ser mais coração e devolve a vida para a vida.

Somos louc@s. E a loucura é o melhor dos elogios a serem feitos em uma sociedade plenamente sã. @s louc@s são inúteis, e nós amamos as pequenas inutilidades, amamos a Deus. A teologia surrealista é feita por louc@s e para louc@s. A imaginação é uma árvore plantada junto a ribeiros de águas, cujas as folhas nunca murcham e dão seus frutos no tempo certo. Os frutos da imaginação são as loucuras feitas com as imagens. Os seres humanos pensam e sentem com as imagens e nós fazemos teologia com as imagens.

Imagine só… um lobo vivendo com o cordeiro, um leopardo se deitando com um bode, o grande leão e um pequeno novilho pastando juntos, e uma criança dançando e guiando eles. Junto da cena, dezenas de vacas se alimentam na companhia de diversos ursos, e os bezerrinhos e ursinhos brincam juntos, mais a frente vemos o leão dividindo um bom prato de palha com o boi. E várias criancinhas fazendo uma ciranda e uma linda apresentação musical para as cobras, uma das crianças coloca a mão no ninho da víbora para a chamar para a roda de música.

Agora pensem numa mulher grávida, vestida do sol, pisando na lua e com uma linda coroa com doze estrelas na cabeça. Um gigantesco dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres querendo comer o filho da mulher, que já estava dando a luz. O dragão foi avançar para devorar a criança e derrubou um terço das estrelas do céu com sua poderosa calda. A criança foi arrebatada por Deus e a mulher correu para o deserto. E nisso começou uma grande batalha no céu, diversos seres celestiais contra o grande dragão vermelho. Acabou que o dragão foi lançado para terra (pois essa batalha se dava na dimensão do céu) e começou a perseguir a mulher que dera a luz a criança. E foram dada asas de águia para mulher, que saiu voando pelo céu tentando se livrar do dragão vermelho e tentando chegar ao local preparado por Deus no deserto. Mas o dragão maligno se irritou fortemente contra a mulher, e da sua boca jorrou água como um rio, para alcançar a mulher e arrastá-la com a correnteza. Mas a terra, amiga da mulher, a ajudou, abrindo a boca e engolindo o rio que o dragão fizera jorrar. E então, o dragão se pôs em pé na areia do mar. Mas a mulher e a criança estavam a salvo.

A narração faz parte do processo da teologia surrealista. Evocar imagens através de textos, evocar sensações e emoções através de letras mortas em um papel. Vivificar o texto é o objetivo da teologia surrealista. Não queremos o racionalismo! Queremos quebrar o império da lógica na teologia. Queremos ultrapassar os limites da linguagem através do puro onirismo.  Partilhamos do mesmo desejo de André Breton que diz que gostaria de dormir, para poder se entregar aos dormidores, como se entrega aos que lêem, olhos bem abertos; para cessar de fazer prevalecer nesta matéria o ritmo consciente de seu pensamento. Queremos que a teologia seja feita entre o estado do sonho e da realidade, mas questionamos, há um limite entre sonho e realidade? Fazemos coro ao Manifesto do Surrealismo quando diz que nós acreditamos surrealidade, se assim se pode dizer “na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer”. @ teólog@ surrealista faz teologia dormindo, trabalha enquanto sonha, elabora suas narrativas teológicas enquanto está embalado pela nuvem do não-saber onírica.

O fazer teológico do surrealismo se passa pelo corpo-erótico de Deus. Uma mulher com sete peitos, diria Manoel de Barros. E já que a teologia passa pelo corpo-erótico do divino, também passa pelo nosso corpo-erótico-humanóide. Por isso temos que profanar o uso racional da linguagem, pois ela limita os nossos mundos. Utilizaremos a linguagem com os nossos corpos para dar um uso surrealista a ela. Queremos a performance da teologia surrealista no movimento desenfreado da dança, a desordem da linguagem que permite o uso extravagante do imaginário surreal. Ansiamos por uma teologia-surrealista-concretista-erotista.

decio

Organismo, 1960 – Décio Pignatari

Fazemos coro com a teóloga surrealista Nancy Cardoso quando diz que << cheiramos o orgasmo como dinâmica prazerosa que dignifica a pessoa, as relações, a família e a casa. Fazemos teologia pôr prazer. >>  Surrealismo é o prazer cerebral, corporal e espiritual. O prazer da teologia surrealista é ela ser surrealisticamente corpórea. Se mistura no sonho,  no corpo, nas narrativas, nas festas, na bebida e comida, no som, nas imagens, no(a) transe(a), no silêncio, no nada e na inutilidade.

A língua faz linguagem. A língua teológica faz loucuras. Sentimos as palavras nas pontas de nossas línguas. Comemos o livrinho, sentimos o sabor do favo de mel, e nosso estômago não se amargou. Nosso paladar se palavreou. A letra D tem um gosto um tanto quanto peculiar, lembra nuvem chuvosa com vento do sul. Já o E tem a acidez das cigarras no cio. A vogal U tem gosto do cheiro do mar. E a serpente S tem toque de ervas de quando descemos pelo escorregador. A mistura dessas letras é a explosão surreal de sabor! Chupamos as letras da palavra para melhor guardá-las no coração.

lenora de barros

Poema, performance fotográfica, 1979. Lenora de Barros

Como teólog@s transvemos as palavras para o labor teológico. Ultrapassamos a linguagem com os sentidos. Encontramos na teologia o mundo dos nossos sonhos e desejos. Exploramos a linguagem na surrealidade das letras. E escrevemos teologia porque nos dá vontade! É a vontade da vontade. É um apetite do fantástico, do surreal, do animalesco. A vontade move e é movida. Queremos reviver a salvação – ou a perdição ? – da vontade da vontade, a verdadeira vida, que é o ser criança. Brincar por brincar, sem objetivo, na inutilidade do tempo, onde o peso das horas não passa de plumagem. Teologizamos por teologizar.

<<Faço

dançando

O que se fez, o que se fará>>

O espírito d@s surrealistas está sobre nós porque el@s nos ungiram para despregar os pregos fixos no emprego de serem pregos pregando assim verdades inverdadeiras. Cantamos com Breton que não cremos na << virtude profética da palavra surrealista >> Mas a encaramos como oracular, enigmática, misteriosa. É necessário desnudar a palavra surrealista, não para compreendê-la, pois já perderia sua surrealidade. A magia está em não compreender, nem tudo foi criado para ser entendido. Há coisas, como Deus, que são criadas apenas para serem contempladas. Assim também é a palavra surrealista. E como desnudamos a palavra surrealista, desnudamos a Deus também, para melhor poder enxergar suas partes íntimas e contemplar em pleno êxtase a Graça Divina.

“O surrealismo é o “raio invisível” que um dia nos fará vencer os nossos adversários. “Não tremes mais, carcaça.” Neste verão as rosas são azuis, a madeira é de vidro. A terra envolta em seu verdor me faz tão pouco afeito quanto um fantasma. VIVER E DEIXAR DE VIVER É QUE SÃO SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS. A EXISTÊNCIA ESTÁ EM OUTRO LUGAR.” Breton

[Manifesto costurado nas diversas conversas, com pessoas vivas e mortas,  realizadas no período surrealista, ou seja, na plenitude dos tempos]

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